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9 de jul. de 2013

Esta entrevista é Filosofia pura!! Muito interessante!!

Confiança entre médico e paciente está comprometida, afirma cirurgião

LUÍS EBLAK
EDITOR DA "FOLHA RIBEIRÃO"
"A confiança entre médico e paciente foi consumida pela presença cruel da relação convênio-paciente. [Com a vigência dos planos de saúde] o paciente passou a ter o seu 'médico do convênio', que deve ser deletado quando existe a troca do convênio."
A afirmação é do médico ribeirão-pretano Reginaldo Vianna, 63, que acaba de lançar o livro "Qual Quem Sou Eu?" (editora Funpec).
Para ele, a necessidade dos convênios é fundamental na sociedade brasileira, mas ela trouxe consequências inclusive na saúde pública.
"No SUS, isso leva perigosamente a uma relação de desconfiança mútua. O paciente é induzido a duvidar da capacidade do médico, que ele não conhece, mas que deve atendê-lo porque é aquele que está de plantão."
Ex-professor de cirurgia pediátrica e formado pela tradicional FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto), da USP, Vianna decidiu estudar filosofia aos 57 anos.
O livro agora lançado não trata da medicina, mas na conversa com a Folha sua profissão foi um dos temas discutidos. O principal foco em sua obra, porém, é a relação que o ser humano tem com os outros.
Edson Silva/Folhapress
Reginaldo Vianna, cirurgião plástico ribeirão-pretano, mostra livro lançado
Reginaldo Vianna, cirurgião plástico ribeirão-pretano, mostra livro lançado
Leia a seguir a íntegra da entrevista concedida por e-mail.
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Folha - Médicos, advogados e outros profissionais com ensino superior costumam lançar livros de literatura (romances, poesias), geralmente fruto de trabalho realizado nas horas vagas. O sr. deve ser um dos poucos a lançar um livro de filosofia, após fazer seu segundo curso universitário já como médico formado. Por quê?
Reginaldo Vianna - O fato de ser profissional liberal, cirurgião pediátrico, certamente exacerbou em mim o questionamento constante sobre tudo e sobre todos. A minha formação profissional exige uma capacidade ou uma possibilidade maior em "juntar fragmentos" (da saúde ou da falta dela) e conceber um diagnóstico para posteriormente estabelecer um tratamento e finalmente conviver com o resultado o resto da vida.
Felizmente meus resultados sempre foram muito bons e a gratificação pessoal, incrível. O desgaste, porém, de todo esse processo, após 35 anos de centro cirúrgico, me fizeram procurar a eventual origem da forma de nosso pensar e de nossas posturas. Posturas como indivíduo e como humanidade, como cidadão e como sociedade, como elemento de uma determinada cultura ou como elemento de uma outra cultura.
O que poderia nos fazer tão diversos que dificilmente conseguimos prever reações individuais nas várias situações?
Os questionamentos dos alunos [de medicina] e dos [meus] pacientes são um livro aberto neste aprendizado.
A busca de respostas me levou ao curso de filosofia, porém sem a ideia de hobby, mas de nova formação. Foi um curso básico, mas que me permitiu olhar o ser humano de uma forma mais pragmática e mais compreensiva.
Esta busca me levou a encontrar realmente a necessidade da participação do "outro" em toda a nossa vida. A aceitação compreensiva do "outro" passa então a ser um ponto crucial.
Fale resumidamente sobre as ideias centrais do livro.
Acho que esta pode ser uma das ideias centrais da obra: 1- Não temos um EU original nem particular, 2-O nosso EU deve ser uma criação "a quatro mãos" (isto não deve representar a possibilidade única de apenas um "outro" nesta criação), 3- As dúvidas sempre são verdadeiras, as respostas nem sempre.
Pode-se dizer que a base da filosofia é a dúvida, o questionamento. A dúvida também é vital para a medicina, mas esta, por outro lado, busca o mais próximo possível da "certeza", com diagnósticos e exames de precisão, por exemplo. Como conciliar isso, para o sr., que convive nos dois mundos?
Muito interessante a sua forma de interpretar as coisas, e atinge o fulcro da questão com muita facilidade.
Durante toda a minha vida médica esta questão me perseguiu. Eu preciso de "certeza", ainda que provisional (mas não provisória), para poder estabelecer um diagnóstico, principalmente cirúrgico.
Meus pacientes sempre foram crianças com malformações a serem corrigidas, ou patologias graves e com indicação cirúrgica. Mais do que a própria medicina, que se compromete com o "melhor que o médico pode dar e não com a cura". Eu nunca aceitei a falha e a família esperava de mim "certeza diagnóstica e habilidade cirúrgica impar", não aceitando menos do que o ótimo.
Ninguém melhor do que o médico conhece as suas limitações e as limitações da medicina, mas como acreditar em sua própria incapacidade e continuar atendendo? Este dilema pode nos levar à depressão ou à supervalorização de nosso conhecimento.
O atendimento médico, por sua vez, se fundamenta na confiança mútua, médico/paciente, e ela está muito comprometida em nossos dias quando o paciente pode escolher, não o seu médico, mas o seu convênio e, no caso do SUS, nem isso.
O estabelecimento do tratamento a ser proposto nasce desta relação única, onde o médico deve convencer o paciente (ou sua família) daquilo que ele concluir, ou melhor, daquilo em que ele se convenceu que acredita.
A relação médico/paciente se baseia na crença, no crer, e não necessariamente na verdade. Se o paciente não acreditar, o tratamento estará fadado ao insucesso.
Como convencer alguém de uma situação muito complexa e grave se ele não está ali por acreditar em você?
Como conviver com isso quando uma vida ou a saúde de alguém está em jogo?
A filosofia pode me mostrar que o homem somente poderá chegar em níveis de conhecimento maior por meio da dúvida, na aceitação ativa da dúvida. No entendimento da existência da "verdade provisional".
Esta verdade é aquela que existirá por um tempo variável ou infindável, até que possa aparecer, ou não, uma nova verdade em função de todo um novo conhecimento.
A tecnologia aplicada à medicina nos tem mostrado uma faceta cruel do subjetivismo humano. O leigo de maneira geral, até porque não escolhe o seu médico de confiança, se apega cada vez mais aos exames que, para ele, pode substituir a eventual incapacidade técnica daquele profissional, que por acaso o está atendendo.
O médico por sua vez, ao pedir os exames desejados pelo paciente pode se "livrar" rapidamente daquele atendimento. Isto é cruel e desumano. A medicina me ensinou que eu somente posso ser grande se eu for grande na relação com o outro, neste caso o paciente.
A filosofia me mostrou que a dúvida pode ser o esteio de todo o crescimento e não uma falha da criação.
Quem sabe a filosofia pode me manter um pouco mais centrado na necessidade de me aceitar falível, humano, curioso e incompleto até que que eu consiga ser maior e melhor, descobrindo-me capaz de ser aceito como criatura e como criador.
Não sei se entendi... Por que a confiança mútua médico/paciente está comprometida?
A relação médico/paciente foi consumida, fragmentada pela presença cruel de uma nova relação, a relação convênio/paciente. A necessidade do convênio em nossa sociedade é fundamental, mas há que se considerar o risco contido nesse "progresso irreversível".
Com a vigência dos convênios, o paciente passou a ter uma nova situação, a de ter o seu "médico do convênio" que deve ser deletado imediatamente (exceto em poucos ou raros casos) quando existe a troca do convênio. [Neste momento] Um novo médico, necessariamente será escolhido. Esta relação se tornou virtual.
Evidentemente no SUS isto é levado ao extremo e leva perigosamente a uma relação de desconfiança mútua. O paciente é induzido a duvidar da capacidade do médico, que ele não conhece, mas que deve atendê-lo porque é aquele que está de plantão.
O médico é imposto a ele. Inúmeras são as informações de "erros médicos", "má formação universitária", "faculdades mercantilistas e sem condições de ensino", etc., que corroboram a desconfiança do paciente.
O médico por sua vez corre o risco de não se sentir "aderido" ao paciente, que ele não consegue perceber como sendo seu. A relação médico/paciente, a meu ver, está comprometida sim, e compromete a recuperação de uma melhoria no atendimento à saúde pública se não for considerada como variável importante no sistema.
Evidentemente o livro não foi escrito para discutir medicina, aliás eu não faço isso no trabalho, mas as suas perguntas realmente me alertaram ou me levaram a estabelecer este paralelo que me pareceu sociologicamente interessante.
Discutir a formação do EU como dependente da relação com o outro e considerada a singularidade do indivíduo foi o que me propus. Escrever novamente sempre será uma promessa diretamente proporcional ao retorno que tiver daqueles que eventualmente possam ler o trabalho. Em princípio isto tem sido muito gratificante.
Como o sr. trata no livro sobre a busca do eu, senti falta de alguns autores mais modernos. Cito um: Gilles Lipovetsky, que tem um estudo interessante sobre o individualismo, "A Era do Vazio". Pretende dar continuidade ao tema abordado, em outro livro, por exemplo?
Eu realmente não sou e não tenho erudição filosófica para discutir temas específicos de filosofia ou sociologia. A minha formação filosófica certamente é pouco menor do que seria o básico necessário. Por mais de 40 anos eu só li e estudei técnicas cirúrgicas em cirurgia pediátrica.
Lamentavelmente eu não conheço o trabalho do Gilles Lipovetsky e li muito menos do que gostaria, principalmente dos mais modernos.
A maioria dos autores que eu pude conhecer, ainda que superficialmente, geralmente foram autores de trabalhos clássicos e que se aplicavam à análise que eu tentei fazer, fundamentalmente voltada para a percepção das alterações no pensar do ser humano, considerada a sua história.
Nesta quase viagem, era importante tentar identificar em alguns momentos dessa história, como o homem pode representar o seu EU de maneira a sentir-se um ser completo ou pelo menos aceitando-se como "possivelmente" completo.
Como teria o homem convivido com "o que os outros viam nele" mais do que aquilo que ele considerava ser ele mesmo?
De maneira geral me fixei em dois momentos da história para poder tornar mais clara a minha percepção pessoal de "verdadeiros divisores do subjetivismo humano".
Em primeiro lugar a "mundialização do homem" (possibilidade de atingir, pelos mares, qualquer lugar da terra) e depois o período do Iluminismo com o início da Idade da Razão e as consequências do cientificismo crescente.
A suposta necessidade de um progresso radicalizado atropelou a humanidade que não pode se adaptar "ao novo" (Ulrich Beck) e culminou com o individualismo fundamentado na singularidade absoluta do homem, que prega uma igualdade paradoxal porque na verdade ele elege a sua liberdade, e não a igualdade ou a fraternidade, como necessidade intestina de seu viver.
Este individualismo é muito mais um fenômeno sociocultural do que apenas mais uma área de estudo da filosofia. Foi este tipo de individualismo, que minimiza a importância do "outro" na nossa vida, que me chamou a atenção porque era isso que eu percebia, algumas vezes, no atendimento médico diário, mas principalmente nas discussões de entidades de classe, das quais eu fiz parte muitos anos.
RAIO-X
REGINALDO VIANNA
VIDA
Nasceu em Ribeirão em 25 de dezembro de 1949
FORMAÇÃO
Fez o ensino médio no Otoniel Mota, medicina na USP de Ribeirão e, já médico, filosofia no Centro Claretiano de Batatais

CARREIRA
Cirurgião pediátrico, foi orientador de residência médica da Santa Casa e professor de medicina da Barão de Mauá